Por
(revistaoeste) No dia 13 de maio, a ex-presidente da Bolívia Jeanine Áñez completou dois meses de prisão, acusada de sedição, terrorismo e conspiração. As autoridades do país acusam a ex-chefe do governo boliviano de ter promovido um golpe de Estado para afastar do poder o líder cocaleiro Evo Morales, que renunciou ao cargo em novembro de 2019. Áñez foi alvo de um mandado judicial que determinava sua prisão preventiva, que vem sendo prorrogada indefinidamente. Além dela, foram detidos ex-ministros de seu governo e líderes militares que supostamente teriam participado do “golpe”. Em princípio, a ex-presidente pode ficar até quatro meses detida aguardando o julgamento. O Ministério Público defende uma condenação a 30 anos de cárcere.
Dias após a prisão, Áñez escreveu uma carta em que revelava problemas de saúde — é hipertensa e está no grupo de risco para a covid-19 — e relatava ameaças sofridas na cadeia. “Levaram minha liberdade e agora atentam contra minha saúde. Decidiram não deixar que eu fosse examinada por médicos independentes, mesmo indo contra uma ordem judicial que pede meu traslado imediato para uma clínica”, afirmou a ex-presidente. “Esta é uma luta pela democracia e vamos com ela até o fim. Eu sou mais uma [vítima], mas estou serena e aguentando enquanto meu corpo deixar. […] A ditadura quer me atribuir crimes que eu não cometi. Nunca fui terrorista. Assumi a presidência pela sucessão constitucional, para pacificar a Bolívia. Não houve golpe.”
De fato, o pedido de prisão de Áñez se sustenta por uma acusação de golpe que já foi refutada até mesmo pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 2019, a entidade apontou indícios consistentes de fraude nas eleições que deram o quarto mandato a Evo Morales, principal líder do Movimento ao Socialismo (MAS). Segundo o relatório independente, houve uma série de irregularidades “muito graves” durante o processo de votação, o que tornou a permanência de Morales insustentável. Sem apoio das Forças Armadas e questionado pela oposição, o líder socialista renunciou ao cargo — assim como o vice, Álvaro García Linera, e os presidentes da Câmara, Adriana Salvatierra, e do Senado, Víctor Borda. Então vice-presidente do Senado, Áñez assumiu a Presidência, cumprindo o que determina a Constituição boliviana.
“A prisão de Áñez é totalmente política e injusta. O caso pelo qual ela é acusada leva o nome de ‘golpe de Estado de 2019’. Mas que golpe? Todos nós, na Bolívia, sabemos que o que aconteceu em 2019 foi um processo de sucessão constitucional, devido à renúncia de Evo Morales e de seus ministros. Todos sabemos que o que aconteceu foi uma fraude eleitoral, comprovada e denunciada pela OEA. E todos sabemos que Jeanine Áñez, então vice-presidente do Senado, assumiu a presidência do país por sucessão constitucional”, afirma a Oeste o cientista político boliviano Enrique Kay, consultor da CYMP Consultoria, que mora na Cidade do México. “Não podemos esquecer que a Presidência Constitucional foi reconhecida e ratificada pelo Congresso da época — um Congresso que estava totalmente dominado pelo MAS. Foram os próprios deputados e senadores de Evo Morales que reconheceram oficialmente o mandato de Áñez, anularam as eleições de 2019 e convocaram novas eleições em 2020”, explica. O economista Hugo Balderrama segue a mesma linha: “A prisão de Áñez é pura perseguição política e uma tentativa de assustar a população dissidente”, diz. “A Bolívia é uma pátria sequestrada por uma máfia cocaleira e pelo Foro de São Paulo desde o final dos anos 1990.”
Democracia em decadência
Em entrevista a Oeste, o ex-ministro Carlos Sánchez Berzaín (que comandou os ministérios da Presidência, do Governo e da Defesa entre os anos 1990 e 2000, nos governos do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada), exilado político nos Estados Unidos desde 2003, afirma que não se pode mais classificar como democracia o que se vive hoje na Bolívia. “O impacto da detenção da ex-presidente Jeanine Áñez põe em evidência que não existe Estado de Direito na Bolívia. Há presos e perseguidos políticos na Bolívia. O poder policial se manipula pelo governo e simplesmente não há separação e independência entre poderes públicos e, em consequência, existe uma ditadura e não há democracia”, diz. “Na Bolívia, não é que a democracia esteja ameaçada. Não há democracia.”
O publicitário Andrés Ortega, que tenta recolher assinaturas para criar o primeiro partido liberal boliviano — o Partido Liberal Conservador —, afirma a Oeste que “a democracia na Bolívia é um remedo”. “Hoje vivemos uma degradação patética. Obviamente, o governo do MAS está encarregado de apertar ainda mais a corda contra as liberdades”, aponta. Além dos abusos na prisão de Áñez, ele vê equívocos da própria ex-presidente como fatores determinantes para sua detenção. “Jeanine Áñez foi presa por seus próprios erros políticos, uma péssima defesa, uma má gestão de mídia e por ter sido abandonada por seus aliados e amigos. Os detalhes técnicos jurídicos nunca foram contestados por seus advogados. É evidente que o governo pressiona o Judiciário, que, além de não ser independente, está cheio de gente envolvida com o poder, tanto que às vezes nem é preciso pressionar.”
Transição fracassada
Entre os especialistas na realidade boliviana ouvidos por Oeste, há um consenso: o governo de Jeanine Áñez não cumpriu seu papel mais importante, o de realizar uma transição entre o regime autoritário de Evo Morales e do MAS para a democracia. Em praticamente um ano à frente do país, Áñez não conseguiu aprovar reformas, não deixou grandes marcas, não teve coragem para denunciar os crimes e cobrar punição dos integrantes do antigo governo e, por fim, ainda quis se candidatar a um novo mandato nas eleições, o que não foi bem compreendido pela população.
Ortega avalia que “o governo de Jeanine Áñez deve ser, de longe, o pior de todos desde Tuto Quiroga [2001-2002]. Reuniu em seu gabinete socialistas para quem o MAS nunca deu importância e gente de esquerda light sem nenhuma experiência política. Todos eles queriam fazer ‘evismo’ sem Evo. Eles não reconstruíram o sistema partidário. Eles geraram mais gastos públicos. Eles não reestruturaram o Poder Executivo. Aprofundaram medidas de esquerda. E muitos se envolveram em corrupção. Em suma, um triste governo de centro-esquerda administrando um aparato comunista”.
Para o economista Mauricio Ríos García, que tem uma empresa de planejamento patrimonial em Cochabamba, a ex-presidente decepcionou. “O governo Áñez pode ter tido boas intenções, mas foi realmente ruim, fundamentalmente porque nunca esteve preparado para o que precisava ser feito para reconquistar a liberdade antes da democracia. Ela perdeu muitas oportunidades e agora está sofrendo as consequências na própria carne”, diz a Oeste. “No plano econômico, em particular, ela não conseguiu sequer fazer um diagnóstico oficial do estado em que recebia a economia no final de 2019. Pior ainda, disse ao público em geral que estava tudo bem. A pandemia acabou revelando as maiores carências e fragilidades da economia e do modelo de [Luis] Arce [atual presidente], implantado por Morales em 2006.”
Para Enrique Kay, embora tenha cometido erros, Áñez fez um governo “regular”. “Cometeu erros e não deveria ter concorrido [à Presidência]. Seu mandato era meramente transitório, e sua função era convocar novas eleições livres, com um novo Tribunal Supremo Eleitoral. Mas ela se embriagou com o poder e decidiu se tornar presidente-candidata, algo que os bolivianos rejeitam fortemente devido aos quatro mandatos consecutivos e ilegais de Evo Morales”, aponta. “Apesar disso, considero que as decisões de Áñez foram corretas e necessárias. Seus ministros eram técnicos e sua gestão durante a pandemia foi muito boa. As decisões de sua chanceler, Karen Longaric, foram aplaudidas em todo o país: expulsar médicos cubanos, expulsar diplomatas da ditadura de Nicolás Maduro e retomar relações com os Estados Unidos e o Chile. Os ministros liberais que ela escolheu se encarregaram de abrir o mercado boliviano ao mundo, destravar o comércio, desregulamentar a economia e reduzir impostos. Tudo isso permitiu que o país não entrasse em colapso, em meio às crises sanitária e política que vivemos.”
‘Castrochavismo’
A prisão de Jeanine Áñez, em março deste ano, ocorreu menos de cinco meses depois da vitória do ex-ministro da Economia e das Finanças Luis Arce nas eleições presidenciais. Ele comandou a pasta durante praticamente todo o período de governos de Evo Morales na Bolívia e acabou sendo escolhido pelo líder do MAS como candidato na disputa de outubro de 2020. Após renunciar, Evo fugiu para o México, onde recebeu asilo político do presidente socialista Andrés Manuel López Obrador. Poucas semanas depois, seguiu para a Argentina, país no qual foi acolhido pelo peronista Alberto Fernández. Em outubro do ano passado, o Tribunal de Justiça de La Paz anulou uma ordem de prisão contra Evo. Em fevereiro de 2021, o Congresso boliviano aprovou um decreto de Arce que pôs fim a todas as investigações que estavam em andamento sobre o ex-presidente — entre as quais as denúncias de fraude eleitoral. O retorno de Morales à Bolívia ocorreu em novembro de 2020, após um ano de exílio.
“Evo Morales é um caudilho comunista que faz muito bem o que um comunista que se preze faria. Ele saiu do poder em uma espécie de autogolpe que seus próprios seguidores lhe deram”, aponta Ortega. Sobre o atual governo, Enrique Kay tem uma impressão negativa. “Minha avaliação do presidente Arce é péssima. Poucos dias atrás, os primeiros seis meses de seu governo foram concluídos, e naquele mesmo dia as vacinas [contra a covid-19] acabaram. O manejo da pandemia foi terrível. Durante seu governo morreram três vezes mais pessoas do que durante o governo de Áñez. A segunda onda deixou o país de joelhos, hospitais entraram em colapso como nunca antes em nossa história, a Bolívia se tornou um dos países com maior nível de letalidade, além da estagnação econômica”, constata. “Todos sabemos que Arce governa obedecendo a seu chefe Morales e que nas próximas eleições o candidato do MAS será Evo. Arce é apenas um instrumento técnico e temporário para preparar o retorno de Evo ao poder.”
Atuando, basicamente, como um preposto de Evo Morales, Luis Arce ainda não conseguiu entregar praticamente nada do que prometera na campanha, avaliam os especialistas. A pandemia de covid-19 agravou a situação econômica, que já era delicada no país. “O governo de Arce acabou confirmando rapidamente o que os mercados internacionais temiam ao receber a notícia de sua vitória, pois depois de seis meses ainda não tem um plano claro nem para enfrentar a crise econômica nem para enfrentar a crise da pandemia”, afirma Ríos García. “Até agora, só se conheceram medidas isoladas e improvisadas de aumentos de impostos, aumento de gastos e dívida pública, acúmulo de déficit fiscal e um gerenciamento muito deficiente de vacinas e do próprio plano de aplicação de doses contra a covid-19.”
Segundo Carlos Sánchez Berzaín, “a confrontação política na Bolívia não é entre direita e esquerda”. “Isso é equivocado. A confrontação se dá entre a ditadura castrochavista e a democracia. A oposição boliviana, que em sua maioria aparece com representação parlamentar e com representações regionais, é o que eu denomino uma oposição funcional. Uma oposição que ajuda o sistema ditatorial a simular que a Bolívia é uma democracia”, critica. “Esse tipo de oposição não tem futuro. O que vai ocorrer na Bolívia em algum momento vai ser a insurgência das resistências cívicas que, diante dos crimes e dos abusos da ditadura, vai terminar por encarar um novo processo de recuperação da democracia e da República, pelo qual cairá a ditadura e também a oposição funcional.”
Governo em apuros
O recrudescimento da perseguição contra opositores do regime na Bolívia se intensificou desde a grande derrota sofrida pelo MAS nas eleições regionais do país. Além das perdas do partido governista, a deterioração social e econômica da Bolívia também explica o revés eleitoral do MAS. “A situação econômica na Bolívia, como em qualquer um dos países controlados pelo castrochavismo, é catastrófica”, diz Berzaín. “Com a pandemia de covid-19, estão escondendo a situação real e prolongando, através de auxílios emergenciais, bônus, esses presentes econômicos. Mas e se acabar o dinheiro? De acordo com os dados do Banco Central para 2020, a dívida do Estado boliviano chega a casa dos 60% do Produto Interno Bruto [PIB]. […] A situação é muito grave. No momento em que se apresentar algum tipo de normalização, vamos ver os resultados catastróficos de 15 anos de ditadura que acabaram com o aparato produtivo do país e converteu a Bolívia em um narcoestado.”
O retrato de uma democracia em frangalhos, em que opositores do regime estão presos ilegalmente e as liberdades da cidadania são permanentemente violadas em benefício de um grupo aboletado no poder, não é novidade em países do continente. Além da Bolívia, Venezuela e Nicarágua seguiram o exemplo de Cuba e já nem se preocupam em disfarçar o arbítrio. O Equador, governado pelo socialista Rafael Correa entre 2007 e 2017, ainda sofre as sequelas do regime autoritário. Argentina e México, comandados respectivamente por Fernández e Obrador, vêm flertando com medidas que ameaçam o sistema democrático desde que a esquerda retomou o poder.
“Há perseguição política [na Bolívia] porque o governo, que não é senão a prolongação dos 14 anos de ditadura de Evo Morales, tem um ditador-em-chefe, Evo Morales, e um chefe de Estado em exercício, Luis Arce. Não há nenhuma garantia do devido processo legal e se violam os Direitos Humanos. A Bolívia é um país com presos, perseguidos e exilados políticos”, enfatiza Carlos Sánchez Berzaín. “A presa política mais notável é a ex-presidente Jeanine Áñez, mas também estão presos dois de seus ministros, militares, policiais civis, estudantes, dirigentes cívicos que durante as jornadas de denúncia de fraude eleitoral em outubro de 2019, que motivaram a renúncia de Evo Morales, defenderam a democracia. Estão sendo agora reprimidos.” Que a revanche da esquerda boliviana sirva de alerta para todo o continente.